segunda-feira, julho 17, 2006

4 de fevereiro.

Levei dois segundos para reconhecê-lo, mas o reconheci. Como o reconheci, eu não faço a menor idéia, talvez já trazia na memória como era o semblante, todas as definições. A postura era imóvel e rígida, toda feita de planos e ângulos, como uma estátua. Eu distraído, claro que não esperava. Olhei para o lado então o vi. Estava um pouco mudado, confesso. Maior em estatura, em definições humanas e masculinas, pêlos, músculos & face. Para além da fisionomia. O que poderia tê-lo modificado tanto? A vida, quem sabe. As paixões, projeções, as tentativas de amor, de comer, de escapas dos que exigem demais. Ele não tinha cara dos que estavam dispostos a ceder muito, sequer alguma coisa. Encerrava-se em si mesmo, era essa a impressão. De imediato, ao encontrá-lo, fui absorvido para o mais secreto Dele. E eu sei o quanto isso é perigoso, pois na realidade estarei lidando com o mais oculto em mim mesmo. Difícil. Permiti-me ser absorvido na esperança de aprender alguma coisa. Mas Ele demonstrava ser de um solo muito seco sem muitos vestígios e fósseis. Ah, mas logo encontrarei vestígios, porque, Ele não pode ser tão Ele mesmo. Ah, e foi no coração da cidade que o encontrei. Sentado em um banco, ou algo parecido. A perna direita inclinada sobre o banco, enquanto a esquerda era largada, suspensa, pelo ar mesmo. As duas mãos servindo de apoio para o corpo, quem sabe, cansado. Mas como o reconheci? Pelos olhos, talvez. Definitivamente eu não sei como soube que ali ele era Ele. Também não vou me retratar de nada. Talvez nem seja Ele. Pouco importa. Importa dizer que se tratava de um ser-vivo vivendo essa vida crepuscular que é como uma convalescença, se minhas lembranças são minhas, e que você saboreia perambulando por aí, depois do sol, sobre a superfície. Foi perambulando que o encontrei. O primeiro contato, aliás, foi perambulando pela minha vida online – sim porque posso me dar ao luxo de possuir duas vidas em uma única respiração. Mas não quero contar com essa justamente pela ausência do olhar, apesar da troca de palavras pelo meio que me permitia sentir-se vivo, então conto como primeiro encontro aquele mesmo da noite de fevereiro. Retomando então a narrativa do encontro, quando virei o rosto e o visualizei, ele me acenou com a mão e um sorrisinho retraído de canto de boca. Acenei com o dedo polegar querendo reafirmar com o gesto a minha virilidade masculina. Logo me encontrava em conflito. As pernas logo perderam a firmeza. Vieram o frio do suor & estômago, e me vi imerso no oceano do não-saber-o-que-dizer. Incrível como tudo de repente volta a rugir e tumultuar de novo. Estamos e nos encontramos perdidos em meio a cidades-satélites, lançados no caminho que precisamos engolir, açoitados pelas venturanças que é o viver, sempre nos perguntando se já não vivemos o suficiente, ou já mesmo não estamos mortos e não nos demos conta ainda – o que é pior -, se já não nascemos de novo... Como lidar com um outro é difícil. Enfim. Eu virei o rosto, então ele estava lá, talvez já me observando antes mesmo de eu ter ciência disso, talvez eu o tenha decepcionado com o meu andar “guenzo”, com os meus gestos intempestivos e sem pudor, com a minha alegria difícil, mas é uma alegria. Será se já o decepcionei antes mesmo de vê-lo? Muito possível, não é nada difícil, pelo contrário. Ele estava lá, com uma pose um tanto quanto espontânea, e se eu não visse que não existiam correntes, juraria pensar ele estar amarrado naquele bloco de mármore ou Deus sabe do que é constituído aquele material. A postura imóvel e rígida, o sorriso para dentro, o tempo, a distância que separava nossos corpos, o meu e o Dele, a distância para o deleite final, ou inicial, não-sei, o referencial era o que menos importava naquele momento. Ele estava de preto, se não me engano. Quanto à cor, pois a cor é um fator importante, eu prefiro negar a sua existência, tudo o que posso dizer era que predominava o preto. Das botas all-star ao pequeno fio de barba. Deveria simbolizar alguma coisa a escolha pelo preto. Poderia estar usando verde se a cor fosse mesmo sem importância, não? O preto seria uma espécie de luto? Seria a marca simbólica de uma vida na penumbra? Marcas de paixões? Ele tinha a cara de já ter sido marcado pelas paixões, pelas ações também, quem sabe, mas devia não mais sofrer e só estar usando o preto pela escolha sem culpa, sem responsabilidade de simbolizar nada: usou o preto por gostar e se identificar com o lado obtuso das cores, nenhuma razão há mais-além. Mas não sabia se estava sofrendo, em nada encontrava uma âncora para firmar terra no sim ou no não. Quanto ao diálogo produzido nesse primeiro momento não me recordo com precisão. Eu fiquei o tempo todo encostado no mármore enquanto ele continuava lá, com a perna direita firmada e a esquerda suspensa.; para maquiar o meu nervosismo acendi um cigarro, provando do meu pequeno veneno diário e rezando para que ele não percebesse o meu nervosismo. Três cliques e o cigarro acesso. Eu tenho dessas de rezar às vezes, quando me sinto encurralado. Não para algum deus, mas para mim mesmo, para que eu saiba lidar comigo mesmo. Para saber qual hora eu devo pedir licença e ir embora. Para saber qual hora ficar calado, ou falar menos, poucas palavras, o mínimo possível, reduzindo tudo a um balançar resignado de cabeça pelo sim, pelo não, pelo quem sabe. Aqui lembro que eu falei demais. Falei mais do que teria falado em uma semana, creio. Ele só confirmava com sorrisos e gestos positivos com a cabeça. Em nada nesse primeiro contato discordou de mim. Foi bem humano. Despedimo-nos com a promessa de um próximo encontro, para o dia posterior. Sentia-me aliviado e depois disso em um passo só, sem olhar pra trás, sem remorso e a uma pequena parcela de culpa: saí. Ele permaneceu lá sentado, agora as pernas cruzadas, no entanto ainda soltas no ar. Como algo que levita, enquanto eu me ligava ao solo cada vez mais Ele me dava a impressão de levitar. Depois fiquei pensando para qual direção teria ido o seu olhar. Será que me acompanhou até onde não pôde mais ver? Talvez tenha me acompanhado pelo espírito para o sempre, até hoje. E eu falo espírito para não me referir ao caráter corporal, porque essa coisa de corpo é para idiotas. Não, ele não deve ter me encarado. Deve sim ter encarado as pessoas numerosas pela rua com toda a longa noite diante delas. As portas fechadas das lojas vomitando o seu contingente. Então em casa eu concluí: ele vai acabar tropeçando em alguém que sofre com as mesmas necessidades. Então estará feliz. Dará alguns passos com este outro alguém, passos juntos, depois provavelmente se separarão, cada um se dizendo, talvez agora cada um se achando com direito a tudo. E quanto a mim, eu.

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