sábado, setembro 12, 2020

Um trecho de carta de Caio F.

 "Depois das viagens, estive quase paranóico. Vi monstros horrendos nas pessoas, me senti perseguido e encurralado, aí me tranquei em casa, e, cada vez que saía, era um suplício - voltavam as ondas do sunshine e eu achava que as pessoas iam me morder, rir de mim, um inferno. Quando melhorei um pouco, tentei sair e procurar alguns amigos, mas não consegui nenhuma integração com eles. Fiquei surpreendido com o grau de vampirização das pessoas: todas elas preocupadíssimas em falar, falar, falar, extrair opiniões, orientações, dicas, dizer coisas inteligentíssimas, mostrarem que não são caretas, que não tem medo, que não sentem dor. Cada contato meu com alguma pessoa representava uma perda enorme de energia vital.: eu saía esgotado, confuso, com dor de cabeça e, principalmente, com dor por não poder fazer nada pelo desespero alheio. A minha própria miséria aumentava. Foi aí que a solidão deixou de ser involuntária para se transformar em escolha. E foi bom, está sendo bom. Passo dia lendo, ouvindo música, vendo velhos filmes na TV, de vez em quando vou ao cinema ou saio para passear na beira do rio que passa atrás do edifício. Fico lá sentado numa pedra, fumando e pensando nas pessoas que perdi, senão em afeto, pelo menos em proximidade física. De vez em quando choro, é bom chorar, eu não tenho vergonha, mas em todos os momentos existe a certeza de ter feito uma escolha acertada, de estar caminhando em direção à luz. Não nego nada do que fiz, também não tenho arrependimentos ou mágoas: eu não poderia ter agido de outra maneira - mesmo em relação a você - levando em conta o quanto eu estava confuso naquela época. Também já não tenho mais aquelas queixas infantis, na base do 'tudo dá errado pra mim', ou autopunições como 'eu sou uma besta, faço tudo errado'. Nada é errado, quando o erro faz parte de uma procura ou de um processo de conhecimento. Gosto de olhar as pedras e os desenhos do vento na superfície da água, gosto de sentir as modificações da luz quando o sol está desaparecendo do outro lado do rio, gosto de sentir o dia se transformando em noite e em dia outra vez, gosto de olhar as crianças brincando no corredor de entrada e das palmeiras que existem no meio da minha rua, gosto de pensar que vou sempre ter olhos para gostar dessas coisas, e por mais sozinho ou triste que eu esteja vou sempre ter esse olhar sobre as coisas. Não sei muito, também não tenho muito, também não quero muito, mas estou aprendendo a respirar o ar das montanhas".

terça-feira, setembro 08, 2020

A serpente se devora

Os cigarros me fumam, você me consome e o meu corpo se auto expele gradativamente, cuspindo-se para fora em uma viscosa teia marrom-esverdeada munida de pequenas farpas indigestas, formamos a serpente que come a sua própria cauda, eu devorando a sua tão minha carne crua, voraz, sem pena, prossigo devorando até o momento de refluxo inevitável, eu me destruo, eu nos saboto, eu acendo velas em fileira próximas à cortina e ao álcool líquido, quero explodir nosso lar, quero abortar nossos filhos, quero assassinar você dentro de mim.

A vodca me bebe, você me embebe em vinho tinto e as minhas pernas empurram fortemente os seus quadris para longe e os envolvem logo em seguida para perto, batendo, latejando, enquanto você sua salgado e se lambuza de luxúria branca e barata, o meu prazer se confunde com aquilo que costumam dizer amor, afeto, qualquer expressão suficiente para transformar libido e gozo em um casaco ralo de lágrimas, porque você é um espinho travando a minha garganta e eu sou o plástico cobrindo a sua cama, eu incendeio, humilhado, o seu corpo encima do meu.

As lágrimas me choram, você me afoga e a sua língua é um cubo de gelo trilhando toda a superfície do seu corpo, marcando, rija e queimando, ardendo no seu sangue que ferve e me derrete, toda a sua sem-vergonhice me quebra em milhões de pedaços, cristais de neve que evaporam em sauna, que se perdem quando os seus braços maduros me envolvem feito brotinho desprotegido, desmaiado na selva, indefeso, eu inalo essa mentira, eu me entrego, eu me piso e me rebaixo, eu me estendo no chão para você montar, fecho os olhos, procuro as suas mãos.

As dores me sofrem, você me comprime no papel embolado e eu vou amando o seu riso na medida em que sei que deveria odiá-lo e me desfazer de todas essas malas, de todo esse calor nos meus bolsos de inverno, desenho a sua cabeça, escorro veneno, desejo a sua morte, desejo a morte dele, reza, macumba, você é meu membro, minha mágoa, eu sou seu amante de final de semana, quero cegá-lo de desejo na incapacidade de consegui-lo inteiro, completo e amarrado, você a perna gangrenada, ainda tenho o sonho de caminhar, mas devo amputá-la.

O ar me respira, você me come e o seu corpo dolorido e cansado procura paz e quentura, não quero roubá-lo, quero apenas tatear o nosso leito na penumbra, sentir a sua presença estrídula, cercando-me, mil olhos, mil bracos, mil pernas me envolvendo, salvando-me, mas eu vou escorregando as mãos por uma rocha, abro os olhos e só vejo uma parede cinzenta, a cama já fria, o quarto vazio, minha alma em vácuo, minha vida em cacos de vidro, não canso de devorar e expelir essa minha cauda de serpente, destruir meus tetos, abortar meus filhos, enterrar meus amantes.

Lista do esquecimento.

 1) Jogarmos Majora´s Mask juntos;

2) Desbloqueei o Nintendo Wii;

3) Cadê o movimento de yoga que ia me mostrar?

4) Leio e releio nossas conversas várias vezes.

5) O nome da planta carnívora;

6) Vamos ver outra peça juntos?

7) Vi os dois gatinhos fora!!!!!!

8) Queria conseguir falar contigo só dia 14 de outubro. Morro de saudade enquanto isso...

9) Lembro e esqueço várias vezes;

10) Um Zelda legal: Wind Waker no game cube;

11) Pensando muito em tu;

12) Ganhei mais um fone, é do PSP, mandei e-mail e da loja responderam que eu podia ficar. Fiquei feliz, orgulhoso de mim e tu? *risos

13) Morro de saudade;

14) Só ouço Lana del Rey;

15) Te ver online e não falar. FODA.

16) EU VOU TE ESQUECER PRA SEMPRE!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Simples troca.

 Sem acusações, e um estando livre do outro por tempo indeterminado.

Se permitindo então ser a presença procurada e o desejo definitivamente encarnado em matéria corpórea e dissolúvel.

É a lei da trégua em segundos de loucura.

É a própria lucidez diante do inevitável e secretamente inesperado.

O amor.

Em cólera expressiva.

O amor.


(Agosto de 2006)

sexta-feira, fevereiro 10, 2017

pouca luz.
vou escrever aqui tudo o que eu quero dizer a você e essa coisa besta que me acompanha de desconfiar que as pessoas fazem um esforço imenso pra me suportar, como eu mesmo não me suporto cinco mil vezes ao dia como se não fosse um esforço imenso pra mim também e aprendi essa coisa horrorosa com você e essa conversa de "vamos sair dessa mais fortes" só se for você meu querido porque eu saí bem péssimo e tudo.
É engraçado como essa história se repete ao longo do tempo temos aqui os registros, infelizmente não é ficção é minha vida registrada para sempre.

sexta-feira, maio 11, 2012

8 de julho.

Nós estamos em plena decadência. Eu e você estamos em plena decadência. A nossa relação está em plena decadência. Quando duas pessoas chegam  a se dizer isso tranquilamente, é sinal de terra à vista. Nem tudo é um naufrágio na vida. Mas um dia eu ainda me afogo no álcool.
(Ana Cristiana Cesar in Simulacro de uma solidão)

domingo, março 25, 2012

Como rasurar a paisagem

de Ana Cristina Cesar

a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria

secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta

domingo, março 11, 2012

O grito.


*

"Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol - o céu ficou de súbito vermelho-sangue - eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta - havia sangue e línguas sobre o azul do escuro do fjord e sobre a cidade - os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade - e senti o grito infinito da Natureza"
(trecho do diário de Edvard Munch que encontrei no wikipedia. Não gosto de citar uma referência da internet, mas para mim é a descrição do quadro, o que presumo a pintura se tratou de uma experiência de angústia pessoal)

terça-feira, março 06, 2012

Estou atrás

por: Ana Cristina Cesar

do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra

sábado, março 03, 2012

Ciúmes.

por: Ana Cristina Cesar

Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente

abril/68

segunda-feira, fevereiro 27, 2012

VOLUME DAS ÁGUAS DO OCEANO


por: Raisa Christina

um livro inteiro de dedicatórias
aos meninos que acordam cedo para ir ao mar
que trabalham e estudam
que já são comprometidos
e que, portanto, não podem
ou não querem
viver comigo

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

"Quando o coração se abade na presunçosa indiferença da segurança, aí é preciso aplicar agulhas penetrantes para acordar o amor: faça com que sua amiga sinta-se insegura ao seu respeito, desperte o ador no seu coração desanimado, que ela empalideça percebendo a sua infidelidade. Quem me dera ser aquele pelo qual o seu furor arranca os cabelos, feliz aquele que a amante geme ao se ver traída".
do musical "Eu te amo mesmo assim" de João Falcão.

quinta-feira, dezembro 29, 2011

via crusis.

você: uma decepção.

quarta-feira, novembro 09, 2011

27 anos.

"sofro mas eu vou te libertar"
*
estou perdendo a visão.

quinta-feira, agosto 25, 2011

um pedido.

quando eu morrer, por favor, não tornem público nenhuma sms pessoal ou e-mail.

facebook.

não respondi ao pedido de amizade de uma pessoa que citou no pedido aquela frase do pequeno príncipe que responsabiliza quem é afectado pelo cativo. tenho vergonha de dizer que considero esta passagem do livro uma coisa perversa, sem pudor e sem humor.

sexta-feira, maio 27, 2011

A mentira do romance.

"De todas as mentiras que nos deleitamos nesse mundo viciado em conforto, nenhuma é mais insidiosa do que a mentira do romance. O conceito sedutor, mas infantil, de que em qualquer lugar vive alguem que nos complementa em tudo, alguem que nos faria plenos. É lógico que esta ilusão impede que nos sintamos plenos por nós mesmos. E faz com que desprezemos nossas deficiências, nossas falhas, tudo aquilo que nos confere nossa humanidade. Nossa humanidade, sem a qual, é claro, nada somos".

(Six feet under, "Olhar alheio").

segunda-feira, maio 09, 2011

Caio Fernando Abreu.

Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o mundo foi-se tornando aos poucos um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de mulheres e homens lindos e sedutores e interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com aquele charme todo especial de homem-quase-maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto"
em "Sem Ana, Blues".

sábado, abril 30, 2011

A obscena senhora D.

"Revisito, repasseio, passeio novamente em nova visita paisagens e corpo, eu teria amado Franz K. riríamos, leríamos juntos com Max e Milena nossos textos bizarros, e cartas, conferências, segredos em voz alta, eu teria amado Tausk e teríamos nos matado juntos, tiro e forca, dois corpos mutilados, teus olhos, Tausk, teus maxilares, tua alma. Victor, toda tua perdição, nunca haveria respostas, nunca, anotaríamos em roxo nossas irrespondíveis perguntas, tudo uma só pergunta.
assinado: Tausk Hillé."