Cinco da manhã. Pouca cafeína. Muitos cigarros. Enxaqueca. Comprimo o corpo em posição fetal. Frio, muito frio. Abraço as minhas pernas roxas e arrepiadas. Repuxo o velho lençol amarelado, devagar. Ele não deve perceber, ou deve? No fundo, ele precisa notar que está sendo descoberto e exposto ao vento. Quero que me note. É necessário perceber a minha pele gélida aguardando os braços do homem. Ele hiberna, rude, urso da caverna. Estou frágil, sozinho, a prostituta da noite se converte em freira da manhã. As minhas costas aguardam aqueles mamilos fervendo. Era o corpo dentro de mim e nada resta além do lençol estreito, do bárbaro a roncar de barriga para cima em uma solidão clara e íntima, da minha fragilidade aguda de esqueletinho confrangido.
A devassidão, a indiferença, eu me envergonho por não usar os escudos com a devida precisão e maestria. A gente trepa, a gente geme de prazer. Ele é mais um na vasta lista, vou superar, vou prosseguir. Ele mal perde tempo para pensar se eu sou apenas outro. Ele coloca a camisa, o terno, a gravata e desaparece. Sem beijo na testa, sem suspirar, sem dar sinal de que vai pensar em mim, na minha voz, de que vai voltar. São dias cheios, tanto para ler, para aprender, para criar, para viver. Para mim o oco. Para ele o leque, o mundo, tudo. Para mim o demônio atrás daquele sorriso, o chá de espera, o cinzeiro transbordando, a cabeça latejando, o sonho, aquele rosto, aquelas palavras, o cheiro de sexo exalado pelo meu corpo, tão dele, tão prosaico que ele jogou fora sem olhar para trás, sem hesitar.
Dias de fel. Mais cafeína. Duas carteiras de cigarros por dia. Gastrite. Abro e fecho a porta desse quartinho imundo inúmeras vezes ao dia para olhar as escadas, para observar se não há alguém se aproximando, para esperar que ele passe novamente por essa entrada, que tome as chaves e as rédeas da minha vida por mais que uma noite. Amargo a inveja, o ódio, a saudade, o amor. Eu o detesto, rogo para um deus lua, para um deus sol, rogo que lhe atravessem a espada na cabeça, clamo por uma justiça interna, uma justiça só minha, rezo para que morra e leve a sua doce princesa nos seus pertences. O seu coração batendo me ensurdece, a sua respiração me rouba o ar, preciso da sua morte para continuar sendo.
Longe do ninho. Expulso do paraíso. Ele ainda não recusou o Éden, mantém a sua Eva intacta, a sua felicidade em progressiva construção, sonhos, beleza, doçura. O belo me expeliu, o jardim me vomitou, e ele continuou pisando no meu cadáver, apertando nas mãos as minhas mãos, trazendo para perto de mim o desprezado cão da felicidade para lamber os joelhos, arrancando a minha pele com os dentes para ver se ainda há vida e brilho nessa carcaça, testando os limites da minha perversão e má índole, procurando trigo no joio que tomou conta de todo o solo fértil.
Mas agora ele acorda, ele não quer, ele não precisa buscar, já tem seu reino, seus servos, seus dias perfeitos, tudo muito bem guardado em uma redoma de vidro, que não posso perfurar. Não posso mais mostrar a lama, nem a mesquinharia, nem o desejo perverso, nem as minhas lágrimas de sangue derramadas por não tê-lo trazido ao meu poço. Chuto com força e muita vontade para longe o desprezado cão da felicidade que me olha com aqueles olhinhos úmidos, esperando a minha compaixão, esperando que o tome nos braços e acarinhe o focinho. Amarro latinhas na cauda. Risco um fósforo e atiro com gasolina no cão judiado. No fundo eu só quero essa minha justiça íntima. Fui assassinado e assassino. Eu ainda vou pisar com salto agulha na sua garganta.